Em 32 estrofes, o agricultor e cantador Ditão Virgílio colocou em seu cordel, o "Estórias de uma perna só", uma apaixonada defesa da cultura caipira e dos modelos de silvicultura tradicionais da região de São Luis do Paraitinga (SP), seu município, que hoje enfrenta um momento de tensão política por causa do choque de interesses entre movimentos e empresas plantadoras de eucalipto. Morador do sítio Tarumã do Bom Retiro, no bairro de mesmo nome, Ditão é apicultor, e nos cedeu uma breve entrevista, pedindo somente que se publicássemos seu cordel (que segue abaixo) não deixássemos de dizer que é um dos 19 volumes do "Estórias". Na entrevista, Ditão, nos contou que o cordel nasceu de um pedido de membros de movimentos sociais locais, para uma audiência do Plano Diretor da cidade, ocorrida em agosto último. A idéia inicial era de que fosse uma poesia sobre o impacto do eucalipto nas nascentes, mas "não deu para ficar só nisso. Eles (as empresas) jogam muito mata-mato, muito veneno contra as formigas. Acho que passa um pouco da conta. Além disso, estão derrubando as casas grandes das fazendas, aterrando e comprando. E estão exigindo que mandem o pessoal das fazendas embora, e o pessoal vem para a cidade. Hoje o pessoal está vivendo disso, mas a chegada das máquinas, que trabalham por 100 homens, vai deixar o pessoal desempregado. No momento está bom para a prefeitura, que não está tendo problemas de desemprego, mas eu estou vendo o impacto disso para o futuro". O poeta, por sua vez, coloca que não é contra o eucalipto em si, mas contra a forma como ele é explorado, e completa: "Eu quero é que cuidem da nossa terra. É só um aviso meu, este cordel". Então, vamos ao aviso: O Saci e o eucalipto (Por Ditão Virgilio - 14/08/2007) 1 Um dia fui passear Lá no reino encantado E em cima de um cupim Eu vi o Saci sentado Com os olhos cheios d’água Que há pouco tinha chorado Então lhe perguntei Por que estava desolado 2 Deu um rodamoinho E ele me respondeu Olha para as montanhas Veja o que aconteceu Plantaram uns paus compridos Que depressa cresceram Todos os bichos foram embora E alguns até morreram 3 É o tal de eucalipto Planta que não é daqui Uma mata silenciosa Que acabou com tudo ali Os macacos foram embora Até o mico e o sagüi Que saudade do sabiá Do sanhaço e o bem-te-vi 4 Esta planta suga a terra As nascentes estão secando Nossos rios caudalosos Devagar vão se acabando As fazendas destruídas Pelas máquinas vão tombando O caipira sem destino Pra cidade está mudando 5 As casinhas da fazenda Também foram derrubadas Só tem árvores no lugar Quase não serve pra nada Ressecando nossa terra Expulsando a passarada Não tendo onde criar Não alegra a madrugada 6 Os peixes estão morrendo Com o veneno espalhado Um tal de mata-mato Que seca até a invernada Dão veneno pras formigas Que nunca é controlado Tamanduás e os tatus Quase foram exterminados 7 Já não tem fogão de lenha Onde fumo ia buscar Não tem mais o galinheiro Onde eu ia brincar Acabou-se o chiqueiro Não tem porco pra engordar Os caipiras vão embora Por não ter onde morar 8 Não tem vacas leiteiras Nem bezerros a berrar Mesmo o cavalo alazão Já não tem o que pastar O galo já não canta Quando o dia vai clarear Se continuar assim O Saci não vai agüentar 9 Com a sombra desta árvore As flores desapareceram A juriti está calada Não canta na capoeira João-de-barro não faz casa Pois não tem mais a paineira O canarinho foi embora Com o sabiá-laranjeira 10 Acabaram-se as algazarras Das bonitas maritacas Até mesmo garças brancas Já ficaram muito fracas Com esta falta de água Também acabou a paca O sertão está em silêncio Com a praga que o ataca 11 O gavião-carcará Já não tem o que comer O curiango não canta Quando chega o escurecer A coruja em desespero Voou no amanhecer Até mesmo a cascavel Não está tendo o que fazer 12 Não tem mais o milharal Crescendo lá na baixada Por isso o inhambu Não pia mais na palhada As rolinhas muito tristes Já não fazem revoada Tico-tico já não pula Lá no meio da estrada 13 A saracura-três-potes No brejo não pode morar Naçanica-bico-verde Não tem inseto pra pegar Pois sem água o brejo seca E não tem nada para dar Os bichos morrem de sede No seu próprio habitat 14 No rio não tem mais bagre Nem traíra nem piaba Pois com a falta de fruta Vem a fome e tudo acaba Veneno na enxurrada Matou o pé de goiaba Acabou fruta silvestre E sumiu a jabuticaba 15 Também já secou O Corguinho o lugar Morreram os lambaris Já não tem o que pescar Camarão de água doce Não sei onde foi parar Sapo, perereca e rã Pararam de coaxar 16 Até a bela siriema Cantou lá na cachoeira Tentando avisar o homem Pra parar com essa besteira Estão matando a natureza Com uma flecha certeira Este mal não vai ter cura Vai durar a vida inteira 17 Queimaram os paus podres Onde o pica-pau faz ninho No oco dessas madeiras Onde nascia o filhotinho As mamangavas sumiram Foram embora de mansinho Só tem cheiro de eucalipto Espalhado no caminho 18 Até mesmo as abelhas Conseguiram enganar Dizendo que essa árvore Muitas flores ia dar Mas quando os botões Começaram a desabrochar Eles fazem a derrubada Não deixam nada sobrar 19 O pobre do vaga-lume Não tem luz na escuridão Pois esses paus compridos Ficam distantes do chão Atrapalhando o seu vôo Nesta grande imensidão Mesmo nos taquaris Pode não ter salvação 20 Sou Saci estou preocupado Se acabar o bambu Como é que eu vou criar No meio do taquaruçu É lá onde também mora Aquele bando de jacu E eles estão sumindo Juntinho com o anu 21 Com um veneno forte Acabaram com o varjão A baixada só tem pau Já não planta mais feijão A nossa mata nativa Não tem mais brotação Com a sombra dessa árvore Nada nasce neste chão 22 Também a onça-pintada Jaguatirica e suçuarana Estão morrendo de fome E ainda levam a fama Porque o veado-mateiro Morreu por falta de grama Se você pensa que foi ela Aí é que você se engana 23 O bem-te-vi já não canta Na copada do pinheiro E o sanhaço azul Não senta no pessegueiro A sombra acabou com tudo Matou o pé de coqueiro Tapera de pau-a-pique Plantaram até no terreiro 24 O caipira indo embora Vai acabar sua cultura Não sou contra o eucalipto Mas sim a monocultura Não comemos celulose Nem essa madeira dura É com sede de dinheiro Que cometem essa loucura 25 Na comida caseira Não tem frango caipira O porquinho na panela Torresmo que se admira Não tendo mais abobreira Também não tem cambuquira Nem toucinho no fumeiro Nem couve rasgada em tira 26 Homem da roça apertado Vai morar na cidade E trabalha com eucalipto Contra sua vontade De vez em quando lembra Que tinha felicidade Num canto chora escondido Do sertão sente saudade 27 Até o vento é diferente Mudou a vegetação Diz que é reflorestamento Mas é uma enganação Porque logo cortam tudo Pra celulose e carvão Deixando a nossa terra Uma grande devastação 28 Por enquanto dão emprego Dizendo que vão ajudar Não passa muito tempo Pra tudo isso acabar Deixam tudo destruído E saem pra outro lugar Fica pra trás a miséria E a fome vai se espalhar 29 Até mesmo a capelinha Onde o povo ia rezar Foi fechada a porteira Para não poderem entrar Tentam acabar com a festa Que é tradição do lugar Se deixarem trocam por pau Até os santos do altar 30 Me chamaram de malvado Pela minha esperteza Gosto de traquinagem Não sou mau com certeza O que quero é defender A nossa maior riqueza Eu sou filho dessa terra Brigo pela natureza 31 Vou indo rapidamente Girando cisco no vento Se você não pensar em mim Agora neste momento De pensar que eu já existo Para isto fique atento Não sou filho da mentira Criação do pensamento 32 Dê um grito de alerta Peça para o povo ajudar Não deixe o eucalipto Com o sertão acabar Este deserto verde Pouco tem e nada dá Sou da terra das palmeiras Onde canta o sabiá FIM (Publicada no "Estórias de Uma Perna Só" Nº 19 - 13.08.2007 - São Luiz do Paraitinga - SP)
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