Cansada de constatar a inutilidade das apreensões que lhe causavam os primeiros vôos dos seus filhos longe dos seus olhos, Dona Wanda recorreu a um texto do Gibran Kahlil Gibran:

Vossos filhos não são vossos filhos. / São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. / Vêm através de vós, mas não de vós. / E embora vivam convosco, não vos pertencem. / Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, / Porque eles têm seus próprios pensamentos. / Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas; / Pois suas almas moram na mansão do amanhã, / Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho. / Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós, / Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados. / Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas. / O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força / Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe. / Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria: / Pois assim como ele ama a flecha que voa, / Ama também o arco que permanece estável.

Num quadrinho emoldurado, o texto foi colocado acima do telefone da nossa casa. Penso que, ela relia o texto toda vez que tinha o impulso de ligar para a polícia para noticiar o desaparecimento, por mais de doze horas, de algum filho seu. Principalmente do mais velho, João Ângelo declaradamente o mais queridinho. Luiz Celso ela esperava por dezoito horas, eu, Carlos, ainda não voava tão longe e Leda, a caçula, era um exemplo de menina. A bem da verdade, todos os seus filhos tiveram igualmente, cada um há seu tempo, e inclusive meus irmãos do primeiro casamento do meu pai, o limite de permanência longe dos olhos da Dona Wanda.

A cada retorno de cada filho era aquele escândalo de mãe italianada: "Vocês ainda vão me matar de preocupação!"

Não matamos.

Dona Wanda viu seus filhos se formarem, constituírem famílias e, como vovó fez questão de, ao seu modo, "estragar" cada neto. Cada neto teve o seu jeito e quando as noras reclamavam ela arrematava: "Vocês tratem de educar que eu trato de estragar."

Nos natais se vestia de Papai Noel e distribuía os presentes para os netos. Os vizinhos chamavam, e Dona Wanda ia com uma felicidade contagiante distribuir presentes para todas as crianças do bairro, na natalina fantasia que, pelo menos naquela noite, todos eram seus filhos e netos.

Depois que o meu pai morreu, a cada ano que passou, ela foi perdendo o ânimo, culminando com a sua morte nesta semana. Aos 79 anos morreu jovem, como diria Tio Zequinha do alto dos seus 90 e tantos.

Nem todas as mulheres são mães, mas ninguém de nós deixa de ser filho, tendo ou não a companhia da mãe ou vivendo das lembranças que ela nos deixou. E o que Kahlil Gibran escreveu, agora eu completo: A flecha jamais esquece o arco que a lançou.