A cultura, quando avaliada e rotulada como tal, isto é, em sentido mais estrito, compreendendo apenas o produto de um fazer cultural idealizado e menosprezado pela mídia, encontra hoje, num mecenato reticente e em veículos cada vez mais massificados, portas cada dia mais cerradas ao experimentalismo e reformulação conceitual que lhe são imanentes. Nos nossos dias, o Cirque du Soleil é exemplo de um empreendimento cultural que deu certo. No Brasil, perdeu-se no tempo a cultura circense, dentre muitas outras. Mas, afinal, onde pretendemos chegar? Objetivamos levantar dois pontos principais. Primeiro, a importância da reciclagem técnica e, principalmente, de conteúdos, dentro de um panorama cultural que se pretende auto-sustentável. Algo que nos parece incontroverso. Dois. Paradoxalmente pretendemos demonstrar que a co-existência e a convivência, harmoniosa, do "velho" com o "novo" é parte indelével e pressuposto primeiro da manutenção desse pretenso estado de autonomia cultural. Como assim? Vamos compreender o que é o "velho". Trata-se de toda uma argamassa que unta passado e presente, projetando sombras ou luzes sobre o futuro de mais longo prazo. Se cultura é aquilo que A, B, ou C elegem como produto midiático, concebido no berço e desenvolvido no laboratório popular, se faz mister o entendimento de todo esse processo singular de eleição. Como em todo sufrágio, há votantes e não votantes - por mais que estes últimos tendam a zero - e há, paralelamente, candidatos. Ora, é óbvio um primeiro apontamento: apenas pode ser eleito aquele que se candidatou e, portanto, aquele que se insurgiu contra a inércia e tomou partido deste ou daquele grupo, representante de determinados interesses. O velho, culturalmente falando, não é produto de uma simples e natural ordem de adequação e superação, como na teoria darwiniana, mas de toda uma conjuntura ordenatória impositiva. Há pré-requisitos não só para votar, mas principalmente para aquilo que será objeto de sufrágio. Assim, o velho não é necessariamente o melhor, tampouco o sobejo, mas é o resultado de um enfrentamento histórico nas urnas urdidas e manipuladas por um contexto de poder, por conseguinte, de influência. O velho é sufragado a um status qualquer por meios historicamente vis e, por vezes, antidemocráticos, por serem decorrência de um embate de classes, na mais pura denotação marxista do termo, em cujo conteúdo repousa a memória de uma nação. Palavra-chave Aqui chegamos à palavra-chave: memória. O "velho" é aquilo que pertence à herança mnemônica de uma nação, que guarda dentro de si não só parte importante dessa herdade como também referências relevantes aos procedimentos "civilizatórios" dos quais haveria pertencido e, de modo consentâneo, interagido. Quando adentramos a seara da experiência cultural, a experimentação propriamente dita, não procuramos reforçar o que aí está, mas negar o que já esteve (considerando a si próprio como um marco delimitador de construções e conceitos). Todo fluir cultural é no sentido de elucidar o passado (um suposto status quo ante), e, num só tempo, elidi-lo. Por que? Alguns se posicionam por ser uma característica atávica do cidadão, particularmente do artista, contestar e oxigenar a matriz que lhe deu origem. Outros dirão a mesma coisa de outra forma. Não importa. O fato é que um movimento cultural, geralmente, toma um rumo direcionado ao futuro, procurando, ao menos aparentemente, soçobrar a ordem posta ou superá-la de maneira inconteste. Talvez, atendendo aos seus instintos mais viscerais de autopreservação ou auto-afirmação. Para enfrentar e afrontar a memória mais recente de uma nação, porém, é necessário conhecê-la profundamente. Esse ato cognitivo por sua vez implica necessariamente em dois outros: buscar o conhecimento do rizoma e suas causas subjacentes, e exteriorizá-lo, de um modo tal que não se perca o seu sentido maior, abrangente. Logo, construir o "novo" passa, de modo inelutável, por um reconhecimento e aprofundamento do veio original, vulgarmente, denominado de velho. Não há, pois, uma inovação sem um respaldo e uma considerável reverência ao que já estava posto. Há paradigmas culturais que claramente não podem ser abolidos, visto pertencerem não só a um sufrágio viciado e ilusório, como também por carregarem esses vícios e ilusões para a posteridade. Caracteres estes que não podem deixar de ser levados em conta em qualquer criação cultural. Muito embora os tempos sejam outros, os trâmites procedimentais permanecem os mesmos! A imposição de conteúdos e domesticação de condutas insurretas permanecem idênticas! Apenas para finalizar, podemos dizer que não se encontra uma criação coesa, autônoma e viável do ponto de vista emocional e econômico, sem uma visita, sem um olhar mais passional sobre tudo aquilo que de alguma forma colidiu e desmoronou para que aquele criador pudesse estar naquele exato momento, dentro daquele espaço específico e contando com uma determinada disposição de alternativas. Em poucas palavras: o novo é intrinsecamente muito mais comprometido com o velho do que sonha nossa vã filosofia! Nota do Editor: Marcos André Carvalho Lins é bacharel em Direito formado na Universidade Federal de Pernambuco e ocupa o cargo de Técnico Judiciário Federal no TRT - 6ª Região (Pernambuco), sendo também escritor diletante.
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