O ralo por onde o dinheiro público escoa está localizado, principalmente, no superfaturamento de licitações. Um rastreamento do modelo da corrupção com obras públicas no Brasil, elaborado pela Associação de Peritos da Polícia Federal, mostra que as irregularidades surgem no edital de licitação e abrangem, também, a execução do contrato. Segundo o mapeamento da associação, em vários casos existem a apresentação de projetos "viciados" entregues por construtoras aos órgãos que fazem a licitação. Entre os vícios, estão o superdimensionamento das quantidades de material, a omissão de serviços e materiais necessários, a introdução de defeitos no projeto e o sobrepreço de materiais. Há, ainda, o conluio de construtoras para que por meio de preços superfaturados definam, entre si, quem irá vencer a licitação. “Se não houver superfaturamento, não tem como haver propina, corrupção ativa, lavagem de dinheiro, crimes eleitorais e compras de votos porque essa é a forma de fazer o caixa”, disse Alan Lopes, que ajudou a elaborar pela associação um projeto de lei para criminalizar superfaturamento de obras públicas. Depois de publicado o edital de licitação, começa a fase de negociação. Segundo o relatório da Associação de Peritos, essa negociação se dá, principalmente por meio de lobby político – ações junto a parlamentares com a liberação de emendas e ações em diretores de empresas públicas que têm orçamento próprio. Esse tipo de atuação pôde ser vista durante a Operação Sanguessuga e, mais recentemente, a Operação Navalha, as duas desencadeadas pela Polícia Federal a pedido do Ministério Público Federal. As operações mostraram a atuação de empresários e empreiteiras junto à liberação de emendas ao orçamento por meio de pagamento de propina, presentes e “mimos” a deputados e senadores. ”Realmente essa é uma fraude bem genérica, das mais comuns”, explicou o perito. Passada essa fase do edital, vem a fase de execução do contrato, o que, muitas vezes não é feita. “Essa fraude é extremamente danosa e exige um alto custo para investigar. É uma perícia muito cara porque, para aprofundar o exame e constatar todas as modalidades exige, além de um esforço técnico, um custo. São locais ermos e, às vezes, há até obras enterradas. É um serviço que o fraudador, quando faz, às vezes tem a certeza de que vai conseguir escapar ileso”, disse. O resultado da malversação do dinheiro público, segundo Lopes, resulta em repasse de dinheiro pago a construtoras a servidores e parlamentares corruptos, o envio de dinheiro não declarado ao exterior e compra de votos e caixa 2 em campanhas eleitorais. Para Lopes, não é apenas acabando com as emendas parlamentares individuais que o problema de corrupção em obras públicas será solucionado. “Há problemas nas estatais que têm orçamento próprio e que não dependem de emenda”, disse. Para ele, a principal causa da corrupção no gasto com o dinheiro público é a falta de tipificação como crime do superfaturamento de licitações. Essa brecha na lei, segundo ele, dificulta o trabalho de investigadores e do Ministério Público, que precisa buscar adaptar o crime cometido à lei já existente, normalmente formação de quadrilha e fraude em licitação. “Fica-se atacando muito a beirada do problema, a lavagem de dinheiro, a pessoa que aprovou a emenda, tudo isso realmente é fraudulento, mas se o faturamento não for estancado, não há como isso tudo ser movimentado”, disse. “Teremos um escândalo atrás do outro até que realmente se reconheça que superfaturamento tem de ser crime no Brasil”, defendeu. Projeto de lei sugere criminalização do superfaturamento em licitações públicas A série de investigações policiais e judiciais sobre fraudes com recursos públicos enfrenta um “malabarismo” para enquadrar superfaturamento entre os crimes previstos em lei. Com essa constatação, a Associação de Peritos da Polícia Federal se articulou para elaborar um projeto de lei para ajudar o Ministério Público e da própria Polícia Federal em fazer o enquadramento do crime e definir penas para irregularidades em contratos de obras públicas. Não há, na legislação atual, a tipificação para crime de superfaturamento. “Percebemos que superfaturamento de despesa pública no Brasil não é crime. Por incrível que pareça, ele não está tipificado no nosso sistema legal. Essas condutas não são crime, são apenas, quando muito, penalidades administrativas”, explicou o perito Alan de Oliveira Lopes, que ajudou a criar o projeto de lei, que aguarda votação no plenário da Câmara. A matéria prevê pena de até dez anos de prisão para que cometer o crime de malversação do dinheiro público, além do pagamento de multa, que pode chegar a 200% do valor do contrato superfaturado. Alan Lopes disse que, entre as modalidades “tangentes” de crime que eram usadas para enquadrar os superfaturamentos, estão formação de quadrilha ou o artigo 90 da Lei 8666/93, que prevê pena de até 4 anos de prisão para fraude em processo licitatório. O projeto ainda inclui como malversação de dinheiro público aquisição de material inadequado ou a contratação de serviços insatisfatórios, o recebimento definitivo de material ou serviço que não se apresente em conformidade com os termos do edital de licitação, o pagamento de indenização em valor superior à condenação imposta ao erário pelo Judiciário e a concessão ou a manutenção de benefício de natureza previdenciária ou assistencial com valor superior ao legalmente estabelecido, entre outros. A pena para os crimes pode ser agravada em um terço se o dano ao erário for superior a R$ 650 mil em concorrências para compras e serviços. “Existe uma lacuna há 50 anos no Código Penal que não aborda esse tipo de problema, que dá margem a tudo isso que temos hoje de Sanguessugas [esquema de superfaturamento de ambulâncias com dinheiro público], Sudam [Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, onde foi encontrado uma série de crimes com recursos públicos], Operação Navalha [desvio de recursos públicos em obras de infra-estrutura]”, disse o perito. “Precisamos acabar com essa cultura de que superfaturamento de despesa pública não é crime”, acrescentou. O projeto ainda aumenta a multa para até 200% do valor do contrato superfaturado. Atualmente, a Lei 8666/93 prevê multa máxima de 5% do valor do contrato para aqueles que fraudarem o processo licitatório. “A multa atual é muito pequena e o superfaturamento que nós temos detectado, em muitos casos, passa dos 100%. O fraudador, mesmo que confessasse que cometeu o crime, pagaria uma multa muito menor do que o valor que ele conseguiu auferir com a fraude”, explicou.
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