E ela começa em casa!
Nas últimas décadas, a sociedade brasileira vem cultivando uma verdadeira cultura de violência. A violência é, sem dúvida, um problema complexo, com múltiplas causas e diferentes conseqüências, e que se apresenta de variadas formas. Por isso, não se pode simplificá-lo e qualquer proposta de solução deve ser precedida por estudos amplos e criteriosos, de natureza histórico-evolutiva e que analise os diferentes aspectos políticos, sociais, econômicos, jurídicos e comportamentais da questão. Contudo, uma estratégia que já se mostrou bem-sucedida em outros países é a substituição da cultura de violência por uma cultura de paz. Neste sentido, a educação familiar, no âmbito doméstico, assume importância crucial. É no seio da família, num ambiente de compreensão, harmonia, amor, cuidado e cooperação, que se pode lançar as sementes da cultura da paz e vê-las germinar durante toda a infância e adolescência dos indivíduos, propiciando a formação de adultos capazes de resolver os seus eventuais conflitos sociais de forma pacífica, sem o recurso da violência. Violência doméstica contra crianças e adolescentes No Brasil, porém, caminha-se na contramão desta estratégia. Com efeito, pesquisa realizada pelo Centro Regional de Atenção aos Maus-Tratos à Infância e Adolescência, de Campinas, detectou - entre 1988 e 1992 - 1.220 casos violência doméstica, sendo que a violência física ocorreu em 43,1% dos casos. O abandono e a negligência foram responsáveis por 23,5%, a violência psicológica por 16,4% e a sexual por 7,7%. Em outra pesquisa, conduzida pelo LACRI/USP, demonstrou-se aumento significativo na violência doméstica contra crianças e adolescentes. Os casos de violência física, por exemplo, saltaram de 525 casos em 1996 para 6.066, em 2004: um aumento de mais de 1.100%. Os casos de violência psicológica, por sua vez, aumentaram de 53 para 3.097, no mesmo período. Finalmente, as notificações de violência sexual passaram de 95 casos, em 1996, para 2.573, em 2004 - vitimando, sobretudo, as meninas. Consultando-se, ainda, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) publicada em 1988, no período de um ano, mais de um milhão de pessoas em todo o País se declararam vítimas de violência física. Deste total, 20% (cerca de 200 mil) eram crianças e adolescentes, sendo 61% meninos e 39% meninas, na faixa etária de 0 a 17 anos. Já em Porto Alegre, 2004, uma pesquisa conduzida com 472 crianças e adolescentes de ambos os sexos, de 8 a 16 anos, revelou que a maioria dos participantes já recebera punições corporais (88,1%) e outras formas de castigos (64,8%). Sobre punições corporais, 86% apanharam das mães e 58,6% apanharam dos pais; 36,9% dos participantes relataram que já ficaram machucados, em decorrência das punições corporais que receberam. Todavia, os dados mostraram que 75,2% concordaram que, quando fazem coisas erradas, as crianças devem apanhar, mas somente 34,5% afirmaram que utilizarão punições corporais em seus filhos, e 27,1% afirmaram estar em dúvida. A pesquisa também indicou que os meninos receberam punição corporal mais severa do que as meninas. Os dados do disque-denúncia Segundo os dados do programa governamental Disque-Denúncia, as crianças e adolescentes são as principais vítimas da violência doméstica. Em 2004, 6.110 denúncias se referiam a esses grupos. No espaço doméstico, crianças e adolescentes sofrem com os maus-tratos (71% das denúncias), o abandono (18%) e a violência sexual (11%). Quanto aos maus-tratos (4.338 casos), as principais ocorrências são: agressão física (3.470 casos) e agressão psicológica (607 casos). Foram citadas diversas formas de castigo, que vão desde as mais tradicionais, como ajoelhar no milho, até aquelas em que as crianças são obrigadas a ingerir as próprias fezes ou mesmo transitar pela rua com o lençol em que fizeram xixi sobre a cabeça, configurando crueldade e humilhação extremas. A violência é a principal causa de óbitos infanto-juvenis Além disso, dados levantados por diversas agências das Nações Unidas, o Fundo das Nações Para a Infância (UNICEF) à frente, demonstraram que as mortes violentas constituem a principal causa de óbitos entre as crianças e adolescentes brasileiros. Com o uso de dados do IBGE, o estudo demonstrou que 16 crianças e adolescentes são assassinados, por dia, no Brasil - num total de 5.840 casos anuais. Somando-se a esses, os casos de suicídios e acidentes de trânsito, chega-se a um total de 14 mil crianças e adolescentes vítimas de mortes violentas a cada ano, sendo 12 mil meninos. Avanços na proteção aos direitos infanto-juvenis Estes dados, aos quais se associam várias outras repercussões negativas na vida da família e na própria sociedade brasileira, deixam clara a premência de se iniciar, no País, um processo de construção da cultura da paz. E, sem dúvida, este processo deve iniciar-se no próprio ambiente doméstico, com a completa abolição dos castigos físicos, psicológicos e humilhantes contra as crianças e adolescentes - que, em última instância, servem para legitimar o uso da violência para resolver conflitos interpessoais. Por isso, o Comitê dos Direitos da Criança, órgão criado pelas ONU para monitorar e estimular a implementação da Convenção dos Direitos da Criança pelos países signatários (incluindo o Brasil) é enfático ao pregar a erradicação dessas práticas. O Comitê instou o Brasil a adequar sua legislação para abolir todas as formas de castigo físico e humilhante da vida das crianças brasileiras. Além disso, em 2001, foi criada a Iniciativa Global Para Erradicação de Todo e Qualquer Castigo Corporal de Crianças, que conta com o apoio da UNESCO, do UNICEF e de mais de 90 organizações não-governamentais de todo o mundo. O Programa Pela Erradicação dos Castigos Físicos e Humilhantes Contra a Criança e o Adolescente integra-se a essas iniciativas, buscando a construção de uma cultura de paz, tendo na família a sua base.
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