Fui músico profissional desde 1966, abandonando a carreira em 19 de janeiro de 1982, retomando-a apenas em 2001, depois de quase 20 anos de afastamento voluntário do ofício. Durante esses quase 20 anos, fui como o mágico que se aposenta mas não deixa de se interessar pelo trabalho de seus antigos companheiros: já sabe que não se surpreenderá com nenhum deles, pois conhece todos os truques, mas resta-lhe o sublime prazer de vê-los bem executados, aplaudindo acima de tudo a competência dos companheiros de profissão, quando ela realmente existe. No caso da música me aconteceu exatamente isso: a distância a que me coloquei foi suficiente para que pudesse tomar consciência do que é real e do que é ilusório em nosso universo aparentemente tão rico e no qual, sem exagero, os truques do ofício são a cada dia mais mal-executados, resultando na imensa rejeição pública que tem sido a marca dos últimos anos do Século XX e do início deste. Durante esses anos pude observar a ascensão progressiva dos mesmos poderosos de sempre, no jogo do Caxangá em que o mercado se tornou, esse em que os “Escravos de Jô” tiram, botam, mas sempre deixam o “zabelê” ficar, já que as cadeiras da Alta Direção continuam precisando ser ocupadas. É fatal: sempre que uma delas fica vaga, a “indústria cultural” (sic!) vai buscar em outra de suas co-irmãs um profissional para ocupar a vaga, desalojando-o de seu posto, criando uma nova vaga que precisa ser preenchida, e assim por diante, até que todos tenham mudado de posição sem necessariamente mudar o jogo, que permanece imutável. Pude também perceber que os mesmos artistas de sempre, esses que por princípio seríamos a vanguarda do pensamento criativo nacional, tínhamos nos tornado vassalos dessa indústria, aceitando seus parâmetros puramente comerciais de excelência, confundindo a fama com o sucesso. Engraçado: sempre que alguém de quem não gostamos vende 1.000.000 de CDs somos os primeiros a dizer que “foi jabá”, que “esse tipo de música devia ser proibida”, e que “o povo infelizmente não sabe escolher”, mas quando nós ou um de nossos correligionários alcançamos o mesmo resultado, aí o caso se torna de “justiça divina”, que “essa sim é a verdadeira música popular brasileira”, e que “finalmente o povo aprendeu a escolher”... (Como se a quantidade igual de CDs vendidos ou o “jabá” de que a “indústria cultural” (sic!) indiscriminadamente faz uso pudesse ser duas coisas diferentes ou ter dois valores diversos...) Argumentações irracionais desse tipo são a base do que se costuma chamar de “jornalismo especializado”, através do qual os mesmos profissionais não-abalizados de sempre exercem sua esquizofrenia pública, gerando esse pseudo-jornalismo que, ao estabelecer repetidamente sua ininterrupta série de dogmas imutáveis, cria mais e mais preconceitos, perpetuando-os entre os que lhes dão atenção, sem atentar para as perigosas decorrências dessa atitude em todos os níveis da vida nacional. Tom Jobim, num de seus muitos momentos de lucidez, disse, ainda que equivocadamente: “O sucesso no Brasil é sempre uma ofensa pessoal”. Ouso dizer que nem sempre, mas quase sempre: nas raras ocasiões em que podemos usufruir dele, pelos mais variados motivos, esse sucesso se torna santificado e até desejável. Parece a história do iate: ter um iate é péssimo, mas é ótimo ser amigo de quem é dono de iate, pois se usufrui das benesses sem incorrer nas despesas e problemas. Da mesma forma, se o sucesso pessoal não nos for possível, só nos resta defender o sucesso dos amigos mais chegados: para isso não existe melhor expediente do que desqualificar sem descanso o sucesso do inimigo, ainda que ambos, o do inimigo e o dos amigos, numa análise simples, sejam idênticos. O vício da desqualificação do outro faz parte do processo doentio que pude perceber nestes anos de observação. No Brasil, por herança de nosso processo colonial de formação, temos sempre a certeza de que o lugar no topo da pirâmide do sucesso só pode ser ocupado por uma pessoa de cada vez, e que para que esse lugar seja nosso é essencial que quem lá está momentaneamente caia fragorosa e vergonhosamente. Nosso sucesso pessoal só se justifica plenamente quando o “inimigo”, sendo vencido, é também humilhado e destruído, de preferência para sempre. Sempre estivemos divididos entre “nós” e “os outros”, entre “amigos” e “inimigos”, como se a música que se faz no Brasil fosse um campo de guerra, um território que precisa ser tomado. Soldados de exércitos indistintos, nos digladiamos entre trincheiras, sem perceber que os generais são os mesmos para ambos os lados, e que nossos desentendimentos infantis só os fortalecem, com ou sem nossa concordância. Vi isto muito claramente quando, um dia desses, me caíram nas mãos dois CDs, o primeiro de uma cantora oficialmente muito importante no exército do samba-de-raiz, e o outro o de um conjunto de pagode muito popular, que essa mesma artista costuma execrar sempre que tem oportunidade, desqualificando-os e considerando-os apenas uma reles imitação de tudo que nela seria autenticamente verdadeiro. Observei atentamente a ficha técnica, percebendo que os compositores e os letristas eram os mesmos em ambos, e que havia até duas canções que estavam em ambos os CDs. Notei também que os músicos, os arranjadores, os produtores, até o fotógrafo e o capista eram os mesmos em ambos. Devia haver ali, portanto, alguma diferença artística inegável, que me saltaria aos ouvidos assim que a comparação fosse feita. Não a encontrei. Para falar a verdade, ouvi três vezes cada disco, atendo-me principalmente às duas canções que estavam em ambos os discos, ao final não encontrando entre elas, e nem entre os CDs, qualquer diferença real. Achei então que essa diferença, se existisse, deveria estar em algum território imponderável e não-auditivo, já que as obras eram as mesmas, sem dúvida; os músicos que nelas tocavam exatamente os mesmos; os arranjos idênticos, seguindo sem hesitar as indiscutíveis exigências do mercado. Estaria a diferença talvez na ideologia que move cada um dos artistas, ao realizar sua obra? Quem sabe? Nessa hora me recordei de Mariozinho Rocha, quando ainda era produtor da Odeon, dizendo a todos nos que “infelizmente ainda não compramos as máquinas que conseguem gravar a ideologia dos artistas”, frase de efeito moral que levei muitos anos para compreender. Se uma obra de arte, qualquer que seja ela, não é capaz de trazer em si a verdade sobre si mesma, não há artifício que possa nela inserir o que ela não possui: as manobras estéticas de transformação do brega em kitsch (e posteriormente do kitsch em cult) que temos visto acontecer diariamente são apenas oportunidades de lucro, e não transmutações de merda em ouro. Entenda-se: ao pintar um pedaço de merda com tinta cor de ouro, seja qual for a proveniência da tinta ou a intenção do pintor, não se produz ouro, mas apenas merda dourada. Ou seja: uma toada moderna que tenha sido sucesso na voz de uma dupla country pantaneira permanecerá para sempre o que é, mesmo que em determinado momento algum artista de primeira linha também a grave. Da mesma forma, um samba de raiz que seja gravado por um conjunto de pagode que com ele alcance sucesso incalculável não se torna porcaria da noite pro dia. Nada disso deixa de ser o que é, ainda que a persona dos artistas regravadores a preencha de valor insuspeito/suspeito e a imprensa especializada a divulgue como “maravilhosa/brega”, esquecendo-se de que, quando de seu primeiro registro foi execrada como “brega/maravilhosa” e “insuportável miado de gatos/obra-prima de nosso cancioneiro”. A verdade é uma só: a dita “indústria cultural”, incluídos também os jornalistas que a seu soldo a divulgam, não se interessa por obras, mas sim por artistas, já que estes são infinitamente mais fáceis de vender e explorar. Não importa o que gravem, nem como gravem, ou porque gravem. O importante é que estejam permanentemente na mídia, que os expõe à exaustão para garantir vendagens milionárias de seus CDs. Seu valor intrínseco deixa de ser real e se transforma numa commodity do mercado: valem muito quando na crista do sucesso, valem pouco ou nada quando fora dela. E nós, artistas, aceitamos este jogo doentio como sendo o único possível, confundindo nosso real valor com o valor monetário que o mercado esteja momentaneamente disposto a pagar por nós. “Quanto mais pagam por mim, maior é o meu valor”: está certo? Ou não? Artistas, não somos banqueiros. Um banqueiro, por mais rico e poderoso que seja, só tem para exibir como prova de seu valor de banqueiro as suas conquistas financeiras, pois além delas nada tem a mostrar. Já um artista tem mais do que isso: tem sua arte, única coisa que lhe justifica a existência, tem suas obras, que se perpetuarão na exata medida de sua inserção no imaginário popular, tem sua dignidade pessoal, intrínseca, que não deve nem precisa ser esquecida em troca de uma ou duas páginas na CARAS. Não precisamos substituir nossas obras artísticas por polpudas contas bancárias, por detalhes escabrosos de nossas vidas pessoais (que em última análise só interessam a nós mesmos) e também não usaremos da política de dois-pesos-duas-medidas, considerando as histéricas fãs que arrebanharmos como sendo em tudo e por tudo diferentes das histéricas fãs de nossos desafetos. Mesmo os “artistas-sem-obra” em que muitos de nós nos tornamos, usando as obras alheias para garantir o aplauso da platéia mal-informada, podemos ser mais do que isso. Basta que retomemos nosso verdadeiro papel, seja ele comercial ou artístico, mas honestamente, e sem firulas nem fingimentos. Como disse Frank Zappa: “WE’RE ONLY IN IT FOR THE MONEY” (só estamos nessa pelo dinheiro...), uma muito precisa inversão do real, flagrante crítico do sistema que nos cerca a todos e que a cada dia se torna mais integralmente deformado nessa direção. Portanto, os dogmas que a “indústria cultural” (sic!) tem patrocinado, e que a “imprensa especializada” (sic!) perpetua diariamente, impondo-os a nós e a nosso público como única e absoluta verdade, são os materiais básicos desta coluna. Nela está a minha visão pessoal do processo, descompromissada com qualquer coisa que não seja a própria Arte, já que a Arte vem efetivamente antes de tudo, na minha maneira de pensar, que enfim se tornou radicalmente artística (ou artisticamente radical) como eu sonhei que seria no dia em que me sonhei artista. Aqui exponho minha descoberta do valor superior que tem o gosto pessoal de cada indivíduo, sem dúvida, muito mais importante que qualquer teoria externamente imposta, não importa de onde nem de quem venha. Foram descobertas lentas, doloridas, que se impuseram em mim gradativamente, à medida em que os anos me trouxeram a maturidade necessária, junto com a compreensão do objetivo da Arte, que é o de decifrar nos labirintos das pessoas as charadas que nunca conseguem resolver por si sós. Sofri muito ao perceber que andara enganado todo o tempo, e cada nova noção que se impunha à minha mente, radicalmente oposta àquilo em que eu acreditava sem fundamento, deixou em mim marcas indeléveis, mas ao cicatrizar geraram as palavras, idéias e conceitos de que esta coluna é feita. Não sofro mais com a verdade, como acontecia antes, e nem me refugio mais nas ilusões pseudo-pragmáticas que os Perpetuadores de Dogmas, Defensores de Mitos e Alugadores de Gostos me impuseram durante anos. Aprendi a pensar por mim mesmo, aceitando com alegria aquilo que meu gosto pessoal e minhas emoções verdadeiras me mostram como sendo o que ME agrada, mesmo que não agrade aos meus antigos Lideres. A Arte tomou valor insuspeito e essencial, superior a qualquer coisa que possa surgir em seu caminho, e é dessa maneira que esta sendo escrito o que se segue. Uma paráfrase: se Tolstoi um dia disse “Queres ser universal? Fala da tua aldeia!”, hoje percebo que em matéria de arte, se pretendo ser universal, só posso falar de mim mesmo, o mais sincera, franca e honestamente possível, e que qualquer outra posição será, no mínimo, ridícula. Uma anedota exemplar: Um poeta de posição política radical é preso, e na cadeia recebe a visita de um colega, também poeta, só que perfeitamente assimilado pelo sistema oficial. O poeta oficial, vendo-o atrás das grades, balança a cabeça, num muxoxo, e lhe diz: “Rapaz, rapaz: o que você esta fazendo aí dentro?” E o poeta radical, com o mesmo balanço de cabeça e o mesmo muxoxo, lhe retruca: “Rapaz, rapaz: o que você está fazendo aí fora?” Nota do Editor: Zé Rodrix é músico, escritor e publicitário. Faça parte do Movimento pela Despocotização do Brasil, leia a seção “Iscas Intelectuais” em www.lucianopires.com.br.
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