O rio, objeto assim a gente observou, com uma crôa de areia amarela, e uma praia larga: manhã-zando, ali estava re-cheio em instância de pássaros. O Reinaldo mesmo chamou minha atenção. O comum: essas garças, enfileirantes, de toda brancura; o jaburu; o pato-verde, o pato-preto, topetudo; marrequinhos dançantes; martim-pescador; mergulhão; e até uns urubus, com aquele triste preto que mancha. Mas, melhor de todos - conforme o Reinaldo disse - o que é o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima: o que se chama o manuelzinho-da-crôa.
Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação. Aquilo era pra se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: - "É formoso próprio..." - ele ensinou. Do outro lado, tinha vargem e lagoas. P’ra e p’ra, os bandos de patos se cruzavam. - "Vigia como são esses..." Eu olhava e me sossegava mais. O sol dava dentro do rio, as ilhas estando claras - "É aquele lá: lindo!" Era o manoelzinho-da-crôa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa; eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupuosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea - às vezes davam beijos de biquinquim - a galinholagem deles. - "É preciso olhar para esses com um todo carinho..." Reinaldo disse. Era... De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa. João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas.São Paulo mudou. De cidade industrial hoje se transformou em capital dos serviços. Destino turístico de milhões de pessoas. A cidade vive se adaptando à sua nova realidade. Fui visitar o Museu da Língua Portuguesa e meus anseios se confirmaram. Museu é antes de tudo, um negócio lucrativo e este museu não é diferente. Cumpre a sua função e é rentável. O bairro da Luz onde se localiza o Museu está passando por transformações extremamente saudáveis. De bairro degradado a destino turístico, só a Cultura tem esse poder. Em poucos quarteirões de distância você pode conhecer o Museu da Língua, a Sala São Paulo, a Pinacoteca do Estado e o Jardim da Luz, O Museu de Arte Sacra e acredite, o Museu do Transporte Coletivo. Você precisa de três dias e uma noite para conhecer tudo. No Jardim da Luz as árvores foram plantadas em 1910 e, até hoje, elas continuam crescendo naturalmente sem nenhuma necessidade de correção. Tanto que lá, em pleno centro, acontece todos os finais de semana cursos de observação de aves. No Museu da Língua encontrei numa página do "Grande Sertão: Veredas" um estudo da avifauna feito por João Guimarães Rosa e que me remeteu ao texto acima. Guimarães Rosa é a própria síntese do singular e do plural, descreve o encanto que o observar aves vai desabrochando em todos aqueles que respeitam a natureza. Se o rio enfeita seus obstáculos com manuelzinhos-da-crôa, nas pedras dos nossos caminhos podemos encontrar outras avezinhas a lhes dar a mesma beleza. Basta observar.
Nota do Editor: Carlos Augusto Rizzo mora em Ubatuba desde 1980, sendo marceneiro e escritor. Como escritor, publicou "Vocabulário Tupi-guarani", "O Falar Caiçara" em parceria com João Barreto e "Checklist to Birdwatching". Montou uma pequena editora que vem publicando suas obras e as de outros autores.
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