O perito em Literatura Antiga Pedro Vasconcelos, convidado de Paulinas para o Sarau Teológico O Código da Vinci em debate, conseguiu achar um mérito no romance do polêmico autor: ele colocou o dedo numa ferida extremamente delicada: o lugar das mulheres na Igreja. Mas esta é uma questão sem o apelo de marketing que o autor almejava. O casamento de Maria Madalena com Jesus, a bíblia que o imperador Constantino reescreveu no intuito de retirar dos evangelhos esta e outras informações que poderiam comprometer o cristianismo, o beijo de Jesus na boca de Maria... As polêmicas lançadas pelo livro de Dan Brown e que viraram o assunto do momento de cristãos e não cristãos no mundo inteiro mereceram destaque no Sarau promovido por Paulinas, na última segunda-feira, 12 de junho, na filial da Domingos de Morais, zona Sul de São Paulo, com a presença dos teólogos e pesquisadores da PUC-SP: Pedro L. Vasconcelos, que expôs o tema, e Afonso M. L. Soares, mediador do debate. Sem muito esforço e com pitadas de ironia, Vasconcelos foi refutando, se não todas, pelo menos boa parte das teses apresentadas pelo autor de O Código Da Vinci. Mais que assumir uma postura de ataque gratuito, a explanação cuidou de jogar por terra alguns dos principais argumentos defendidos no romance, apontando especialmente os erros históricos e teológicos - alguns grosseiros, como situar a inquisição na época de Constantino, cerca de mil anos antes de realmente ter acontecido. Filiações literárias duvidosas O teólogo começou por questionar a seriedade da literatura em que Dan Brown diz ter extraído grande parte das afirmações. Uma delas é a obra A grande heresia, cujos autores sugerem que João Batista era o verdadeiro messias, título que teria sido usurpado por Jesus. Chegam a tal conclusão investigando, entre outras pistas, aquelas deixadas por Leonardo Da Vinci em suas pinturas. Brown tomou desse livro apenas os argumentos que defendem ser Maria Madalena e não João a figura que aparece ao lado de Jesus no famoso quadro A última ceia. Os mesmos autores defendem em outro livro a tese de uma conspiração mundial que une a Scotland Yard inglesa e a norte-americana CIA com civilizações extraterrestres. "A duvidosa seriedade acadêmica desses livros indica algo do conteúdo do romance", sugeriu Vasconcelos. O teólogo também questionou a acusação de plágio feita por Michael Baigent e Richard Leigh, dois dos três autores de O Santo Graal e a Linhagem Sagrada (1982), contra Brown. Ele teria plagiado a tese central de seu livro de que Jesus realmente fora casado com Maria Madalena e tiveram filhos. "Plágio de quê?", indagou Vasconcelos. "Se os primeiros descobriram a verdade, esta seria de domínio público e, portanto, passível de ser mencionada alhures. Ao processarem Brown, inconscientemente esses autores admitiram o caráter ficcional de sua própria obra". Segundo o conferencista, Brown deixou dois flancos abertos. Para os que criticam seus ataques à Igreja e ao cristianismo no romance e no filme, ele pode alegar que se trata de uma obra de ficção; por outro lado, avisa, no início do livro, que seu enredo se baseia em pesquisas e documentos, fisgando a credibilidade dos menos desavisados, que podem não entender o limite entre fantasia e pesquisa histórica. Mais que isso, põe em xeque algumas convicções sobre as quais se baseia a fé cristã e com as quais convivem muitos brasileiros, cristãos ou não, que nasceram e cresceram ouvindo falar delas. "É, na verdade, um desrespeito e uma irresponsabilidade. Seria como se, de repente, você encontrasse alguém disposto a revelar supostos segredos de seus pais já falecidos, que poriam por terra a imagem que você sempre cultivara deles." O casamento O palestrante não poupou ironia ao citar um trecho do Evangelho de Filipe mencionado no romance, acerca da reação dos discípulos diante de um beijo que Jesus teria dado na boca de Maria: "Mestre, tu a amas mais do que ama a nós?" "Se Jesus realmente fosse casado com Maria", perguntou-se Vasconcelos, "por que um beijo teria provocado essa reação? Por que os discípulos queriam o mesmo tratamento dado a Madalena se ela, como o autor defende, era esposa dele?" Na verdade, o próprio texto sugere que a questão é outra: o problema era que Madalena recebia o tratamento que se dispensava a um discípulo. Pelo raciocínio simplista de Dan, o casamento "fazia parte do decoro da época"; portanto, todo judeu tinha que se casar. Sendo Jesus um judeu, era casado. Ora, João Batista não foi casado, nem São Paulo, nem os essênios... O celibato era exceção, mas também tinha seu espaço naquela época. O texto-chave para a afirmação de que Maria fora casada com Jesus veio dos Evangelhos apócrifos de Filipe, datados do século II, e que só foram encontrados em 1945. Dan Brown teria interpretado mal a palavra "companheira", citada nesses escritos, ao alegar que, em aramaico, companheira quer dizer "esposa". O problema é que os originais desse texto estão na língua copta, provavelmente traduzidos do grego, e nada têm a ver com o aramaico. O beijo, por sua vez, fazia parte de antigo ritual cristão, e era trocado como símbolo de comunicação da sabedoria. Dado precioso Vasconcelos concorda que, sem dúvida, esse lugar diferenciado de Maria Madalena entre os discípulos de Jesus deve ter suscitado reações de ciúmes e de incômodo, gerando polêmicas que percorreram pelo menos o século II inteiro. Tanto é verdade que Jesus dispara em um dos evangelhos apócrifos: "Irei fazer dela (Maria Madalena) macho, para ter o mesmo direito ao céu que vocês". Havia tensão no interior das comunidades cristãs nos primeiros séculos e isso incomodou a Igreja no que diz respeito ao papel das mulheres. "O problema colocado pela presença de Madalena enquanto personagem histórica é exatamente o do lugar das mulheres no seio da Igreja." Por que Dan Brown não explorou essa crítica importante à Igreja? Talvez porque seja mais rentável enfatizar um suposto casamento do que entrar em minúcias das tensões internas das comunidades cristãs, nas atitudes totalitárias que essa presença feminina provocou. Constantino e a Bíblia Quanto à alegação de que o imperador Constantino teria mandado fazer uma bíblia novinha que omitia os evangelhos que tratavam do casamento, Vasconcelos rebateu: Na verdade, Constantino mandou fazer 50 cópias para dar de presente. Mas isso não faz dele um criador de bíblias. Além disso, por ignorância, descuido ou má-fé, Brown confunde "Bíblia" e "Novo Testamento". A Bíblia cristã inclui os livros da escritura judaica, muito mais antigos, sendo o Novo Testamento apenas a parte da Bíblia baseada na experiência de fé que tem por centro os fatos da vida de Jesus e de seus discípulos. Afirmar que tudo foi forjado por Constantino é leviano e desrespeitoso para com os judeus. Constantino teve, sim, um papel importante como divisor de águas do cristianismo, mas não pelo que lhe conferiu Dan Brown. Ele trouxe a Igreja Cristã para perto com o intuito de se valer dela para reafirmar seu poder e unificar o império romano que caminhava para o fim. Para tanto, ele precisava de uma forte hierarquia religiosa. Mas, em nenhum momento chegou a proibir outras religiões. O decreto que fez publicar em 313 apenas suspendia as perseguições contra os cristãos, que vinham de seu antecessor Diocleciano, e ordenava a devolução dos bens e riquezas que deles haviam sido confiscados. Ao mesmo tempo, Vasconcelos também criticou a postura apologética de alguns membros da Igreja no debate que se criou em torno do filme e do romance. Certas confutações a Brown saem pior que o soneto, pois também se baseiam em afirmações fundamentalistas, sem consistência histórica, ou simplesmente ingênuas. Apesar dos muitos "furos" do Código Da Vinci explicitados neste sarau, Vasconcelos desaconselha uma posição de ataque ou de boicote à obra. O melhor é aproveitar de ocasiões como essa para esclarecer o público interessado. E, quem sabe, torcer para que o ilustre Dan Brown fuja da regra e resolva aceitar o convite para participar de debates como este.
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