Existem soluções de linguagem que jamais perdem a utilidade, sendo infinitamente reproduzidas. Ainda não nos livramos, por exemplo, da influência de "O último dos moicanos", título do romance de James Fenimore Cooper sobre a amizade entre um índio e um branco, numa guerra do século 18 na América. Talvez o motivo seja a força da proparoxítona, amparada na última vogal, e instaurada como lei em épocas terminais - fim dos séculos ou dos tempos. No mais recente apocalipse, pautado pela curiosidade sobre as profecias, "último" virou endemia. Um massacre reforçado pelo famoso fim da História. Ainda hoje, nesta primeira década, quando se deveria falar em início de alguma coisa, sobrevive o hábito de fechar o boteco em qualquer atividade, como se a humanidade fosse uma eterna despedida. O tom parece saudoso da grandeza épica, mas pode ser apenas a vontade de se livrar das chateações, e ir enfim para casa assistir um bom filme. Só que os últimos grandes cineastas estão morrendo. Jean-Luc Godard dizia que precisou duvidar da certeza de que tudo já tinha sido feito para começar a dirigir suas obras. É uma espécie de assombração. O que fazer se os últimos já se despediram? Ficou um tremendo vazio, apesar da quilometragem de vida pela frente. Para piorar, já somos craques em décadas perdidas, palavra que também teve sua fase. Ou será que continuamos nela? A moçada custa a entender que esse é um truque dos mais velhos. Como já viveram suas loucuras, os veteranos definem o fim de tudo para evitar concorrência (e assim se recolher para o sofá sem sentimento de culpa). Enquanto isso, os garotos ficam desesperados tentando arrebentar alguma coisa. Para quê? Para nada. Os últimos anarquistas e revolucionários também já se foram. Não se concebe a resistência da síndrome do último em início de milênio, outra palavra que emergiu poderosa, mas não por muito tempo. Há uma exaustão de milênio, que perdeu a resistência e talvez desapareça do imaginário. Tentaram explorar ao máximo a cambalhota mortal do calendário, anunciada com promessas de catástrofes definitivas. Anunciar de cara um fato monstruoso é pura criação literária, notadamente na Metamorfose, de Kafka, quando, na primeira frase, um pobre coitado descobre que virou inseto. Essa quebra de suspense tem seu charme. Foi imitado por Garcia Marquez em "Crônica de uma morte anunciada", expressão repetida até a insânia nas mais variadas formas. O planeta sofre de morte anunciada. Será que chegaremos aos últimos ecologistas, coincidindo com o fim da vida humana na terra? Do jeito que vai, o último livro será escrito para absolutamente ninguém. Analfabetas, as traças cumprem seu ofício de devorar tudo, até a última enciclopédia, para que a vida possa entrar em novo ciclo. Seria bom se chegássemos ao último "último". Assim todos poderiam parar de se chatear e ir assistir a um filmaço, daqueles que não se fazem mais. O filmaço sumiu, junto com bigas romanas se estraçalhando na arena, travellings majestosos sobre multidões de feridos, além de gritos de "Eu sou Spartacus", que arrancavam lágrimas de espectadores ainda inconformados com a escravidão. Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.
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